terça-feira, 25 de março de 2008

fogo cruzado


me atiro de peito aberto,
em vôo incerto, tiro de liberdade.
uma grade me prende as asas
e vaza os meus sonhos.

os mundos voam e o tempo chove.
me atiram um pedaço da minha vida,
e o sangue escorre numa panela
embebida em vinho azedo.

medo de nada que não eu mesmo.
minha vida que se atira no nada,
mentira lavada e vendida
por preço não mais que de comida.

as balas voam e o tempo chove.
me atiro contra o muro, seguro
de tudo que não existe.
mas o mundo escuro é tão claro quanto triste.

domingo, 16 de março de 2008

uma porta

tantas portas na vida.
tantas vias tortas, vivas ou mortas,
tantas saídas sem sentido e sem caminho.
tanto espinho imperfeito,
num mundo feito de dor e tristeza,
frieza e rancor de sangue-vinho.

das portas que fechei, não me esqueço.
mas pago o preço de ter fechado
e colocado no passado o que passou por mim.
mas nada fechei fora do tempo,
lento, veloz, de vidas sós,
sem começo, meio e fim.

mas fechastes a porta da minha moradia.
recusastes apreço, abrigo,
colocando preço em um amigo.
despi os meus olhos dos teus olhares,
e o meu riso do teu sorriso.
disse um “adeus” indeciso àqueles ares.

e a minha porta se fechou.

e ela nunca mais vai se abrir para os teus olhos.

segunda-feira, 10 de março de 2008

act 1, scene V

acho q todo mundo deveria ler shakespeare...


"Did my heart love till now? Forswear it, sight!

For I ne'er saw true beauty till this night."

segunda-feira, 3 de março de 2008

olhos roubados

aconteceu enquanto eu trabalhava. ou enquanto eu dormia, não me lembro ao certo.

eles vieram. sem pisar as flores no jardim, violaram a minha casa, o meu templo - o meu templo sem deus. inutilizaram os meus já cansados sistemas de defesa de maneira tão corriqueira... que a inveja quase brotou-me nos lábios incrédulos.

levaram-me muito. de tudo, um pouco. deixaram o que nada lhes apeteceu. a minha vida estava lá, exposta, fatiada, pronta para se servir. meu carro era um mix de petit four vagabundos e caros em uma bandeja flutuante que passeava por alguma festa pauliceiamente desvairada.

na balança, o saldo negativo estratosferizava os meus olhos quase mortos. objetos caros e impessoais que não eram meus, roupas de um esporte que ainda não comecei a praticar, uma fiel escova de dentes, bandanas memoráveis, uma boina (ah!, a minha boina!), o meu rádio - fiel companheiro nas horas perdidas da madrugada, quando as almas em paz descansam -, um celular novo (quase noivo), um fone com tecnologia bluetooth que nunca conseguiu me ligar às pessoas e, por último, como num golpe de misericórdia impiedosa, levaram-me os olhos.

a minha mala de fotografia continha alguns cabos, carregadores, pilhas, baterias, acessórios, manuais... coisas de menor importância. mas, ainda assim, o maior valor comumente se acha associado ao menor preço.

o corpo de uma canon eos 500N estava lá. era uma máquina pequena, já avariada, avaliada em alguns poucos reais. seus detalhes argênteos apenas denunciavam a sua distância absurda do profissionalismo. lembrando-me dela, agora, não sei ao certo se sinto pena, compaixão ou saudade. era uma máquina modesta, quase imperceptível - e ela dizia tanto sobre mim!

era a melhor máquina que uma criança poderia comprar.

a 500N foi o meu primeiro par de olhos. a minha primeira imagem em 24x36 (ou quase isso). a minha primeira revelação. a minha primeira pesquisa. a minha primeira descoberta. foi ela que me ensinou a olhar e ver.

e os meus olhos me foram roubados, arrancados covardemente. e eu nem pude dizer adeus...

quero acreditar que a 500N servirá de novos olhos a outras pessoas, ainda que o ciúme quase me arranque essas palavras.

(...)

sem perspectivas. sem futuro. sem passado. sem idéias. sem saídas.

sem olhos, eu chorei.